“Mas, que mal tem feito? Não lhe acho crime algum”, afirmou o Procurador. Mas, diante do ódio e pressão popular insuflada pelos sumos sacerdotes, Pilatos solta o ladrão e homicida, Barrabás, condenando Jesus Cristo a flagelação e morte de cruz.
O que você lerá a partir de agora são trechos de uma história vivida a mais de dois mil anos narrados pela freira alemã Anna Catharina Emmerich (1774 - 1824). A religiosa, que também recebeu os estigmas de Cristo, teve uma série de visões sobre fases da vida de Jesus que se transformaram em livros e inspiraram o filme de Mel Gibbson. Os relatos são chocantes, ricos em detalhes que mostram um sofrimento inimaginável do flagelo e morte de um Deus.
A flagelação de Jesus
Pilatos, juiz covarde e indeciso, pronunciara várias vezes a palavra: “Não lhe acho crime algum; por isso vou mandá-Lo açoitar e depois soltar”. A gritaria dos judeus, porém, continuava; “Crucificai-O, Crucificai-O!” Contudo queria Pilatos tentar ainda fazer sua vontade e deu ordem de açoitar Jesus à maneira dos romanos. Então entraram os soldados e, batendo e empurrando a Jesus brutalmente, com os curtos bastões, conduziram nosso pobre Salvador, já tão maltratado e ultrajado, através da multidão tumultuosa e furiosa, para o fórum, até a coluna de flagelação, que ficava em frente de uma das arcadas do mercado, ao norte do palácio de Pilatos e não longe do posto da guarda.
Os carrascos, jogando os açoites, varas e cordas no chão, ao pé da coluna, vieram ao encontro de Jesus. Eram seis homens de cor parda, mais baixos do que Jesus, de cabelo crespo e eriçado, barba muito rala e curta; vestiam apenas um pano ao redor da cintura, sandálias rotas e uma peça de couro ou outra fazenda ordinária, que lhes cobria peito e costas como um escapulário, aberto dos lados; tinham os braços nus. Eram criminosos comuns, das regiões do Egito, que trabalhavam como escravos ou degredados na construção de canais e edifícios públicos; escolhiam-se os mais ignóbeis e perversos, para tais serviços de carrascos no pretório.
Amarrados à mesma coluna, alguns pobres condenados tinham sido açoitados até à morte, por esses homens horríveis, cujo aspecto tinha algo de bruto e diabólico e pareciam meio embriagados. Bateram em Nosso Senhor com os punhos e com cordas, apesar de não lhes opor resistência alguma, arrastaram-nO com brutalidade furiosa, até à coluna da flagelação. É uma coluna isolada, que não serve para sustentar o edifício. É de tamanho tal, que um homem alto, com o braço estendido, lhe pode tocar a extremidade superior, arredondada e munida de uma argola de ferro; na parte de traz, no meio da altura, há também argolas ou ganchos. É impossível descrever a brutalidade bárbara com que esses cães danados maltrataram a Jesus, nesse curto caminho; tiraram-Lhe o manto derrisório de Herodes e quase jogaram nosso Salvador por terra.
Jesus trepidava e tremia diante da coluna. Ele mesmo se apressou a despir a roupa, com as mãos inchadas e ensanguentadas pelas cordas, enquanto os carrascos O empurravam e puxavam. Orava de um modo comovente e volveu a cabeça por um momento para a Mãe SS. que, dilacerada de dor, estava com as mulheres piedosas num canto das arcadas do mercado, não longe do lugar de flagelação e disse, voltando-se para a coluna, porque O obrigaram a despir-se também do pano que lhe cingia os rins: “Desvia os teus olhos de mim”. Não sei se pronunciou essas palavras ou as disse só interiormente, mas percebi que Maria as entendeu; pois a vi nesse momento desviar o rosto e cair sem sentidos nos braços das santas mulheres veladas, que a rodeavam.
Então abraçou Jesus a coluna e os algozes ataram-Lhe as mãos levantadas à argola de cima, dando-Lhe arrancos brutais e praguejando horrivelmente todo o tempo; puxaram-Lhe assim todo o corpo para cima, de modo que os pés, amarrados em baixo à coluna, quase não tocavam no chão. O Santo dos Santos estava cruelmente estendido sobre a coluna dos malfeitores, em ignominiosa nudez e indizível angústia e dois dos homens furiosos começaram, com crueldade sanguinária, a flagelar-Lhe todo o santo corpo, da cabeça aos pés. Os primeiros açoites ou varas que usaram, pareciam ser de maneira branca e dura; talvez fossem também feixes de tendões secos de boi ou tiras duras de couro branco.
Nosso Senhor e Salvador, o Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, contraia-se e torcia-se, como um verme, sob os açoites dos criminosos; ouviam-se-Lhe os gemidos e lamentos, doces e claros, como uma prece afetuosa no meio de dores dilacerantes, entre os sibilar e estalar dos açoites dos carrascos. De vez em quando ressoava a gritaria do povo e dos fariseus, como uma nuvem escura de tempestade, abafando essas queixas dolorosas e santas, cheias de bênçãos. As turbas gritavam: “Deve morrer! Crucificai-O!”, pois Pilatos estava ainda a discutir com o povo.
Quando queria fazer-se ouvir, no meio do tumulto da multidão, fazia soar primeiro um toque de trombeta, para impor silêncio. Nesses momentos se ouviam novamente os açoites, os gemidos de Jesus, o praguejar dos carrascos e os balidos dos cordeiros pascais, que eram lavados na piscina das Ovelhas, ao lado da porta das Ovelhas, a leste do fórum. Depois de lavados, eram levados, com a boca amarrada, até o caminho do Templo, para não se sujarem mais, depois eram conduzidos para o lado de fora, a oeste, onde ainda eram submetidos a uma ablução cerimonial. Esses balidos desamparados dos cordeiros tinham algo de indescritivelmente comovente; eram as únicas vozes que se uniam aos gemidos do Salvador.
A multidão dos judeus mantinha-se afastada do lugar da flagelação, numa distância, talvez, da largura de uma rua. Soldados romanos estavam postos em diferentes lugares, especialmente pelo lado do posto de guarda; perto da coluna de flagelação havia grupos de populacho, que iam e vinham silenciosos ou zombando; vi alguns que se sentiram comovidos; era como se os tocasse um raio de luz saindo de Jesus.
Vi também meninos indignos que, ao lado do pretório, preparavam novas varas e outros que iam buscar ramos de espinheiro. Alguns soldados dos Príncipes dos sacerdotes tinham travado relações com os carrascos e deram-lhes dinheiro; trouxeram-lhes também um grande cântaro, cheio de uma bebida vermelha, grossa, da qual beberam até ficar embriagados e enraivecidos. Ao cabo de um quarto da hora deixaram os dois carrascos de açoitar Jesus; formam juntar-se a dois outros e beberam com eles. O corpo de Jesus estava todo coberto de contusões vermelhas, pardas e roxas e o sangue sagrado corria-Lhe por terra; agitava-se em movimentos convulsivos. De todos os lados se ouviam insultos e motejos.
Durante a noite tinha feito muito frio. Desde a madrugada até essa hora, não clareara o céu e, com grande espanto do povo, caíram algumas curtas chuvas de pedra. Pelo meio dia clareou e apareceu o sol.
O segundo par de carrascos caiu então com novo furor sobre Jesus; tinham outra espécie de açoites; eram como varas de espinheiro, com nós e esporões. Os violentos golpes rasgaram todas as pisaduras do santo corpo de Jesus; o sangue regou o chão, em redor da coluna e salpicou os braços dos carrascos. Jesus gemia, rezava, torcia-se de dor.
Passaram então pelo fórum muitos estrangeiros, montados em camelos; olharam assustados e entristecidos, quando o povo lhes disse o que se estava passando. Eram viajantes, dos quais uns tinham recebido o batismo e outros o sermão da montanha. O tumulto e os gritos continuavam no entanto, diante da casa de Pilatos.
Os dois seguintes carrascos bateram em Jesus com flagelos: eram curtas correntes ou correias, fixas num cabo, cuja extremidades estavam munidas de ganchos de ferro, que arrancavam, a cada golpe, pedaços de pele e carne das costas. Oh! Quem pode descrever o aspecto horrível e doloroso deste suplicio?
Mas a crueldade dos carrascos ainda não estava satisfeita; desligaram Jesus e amarraram-nO de novo, mas com as costas viradas para a coluna. Como, porém, estivesse tão enfraquecido, que não podia manter-se em pé, passaram-Lhe cordas finas sobre o peito e sob os braços e debaixo dos joelho, amarrando-O assim toda à coluna; também Lhe ataram as mãos atrás da coluna, a meia altura. Todo o corpo sagrado contraia-se-Lhe dolorosamente, as chagas e o sangue cobriam-Lhe a nudez. Como cães raivosos, caíram-Lhe os carrascos em cima, com os açoites; um tinha uma vara mais delgada na mão esquerda, com que Lhe batia no rosto. O corpo de Nosso Senhor formava uma só chaga, não havia mais lugar são. Ele olhava para os carrascos, com os olhos cheios de sangue, que suplicavam misericórdia, mas redobravam os golpes furiosos e Jesus gemia, cada vez mais fracamente: “Ai”
A horrível flagelação durara cerca de três quartos de hora, quando um estrangeiro, homem do povo, parente do cego Ctesifon, curado por Jesus, se aproximou precipitadamente da coluna, pelo lado de traz e, com uma faca em forma de foice na mão, gritou indignado: “Parai! Não flageleis este homem inocente até morrer!” Os carrascos, meio embriagados, pararam espantados e o homem cortou rapidamente, como de um único golpe, as cordas de Jesus, que todos estavam seguras num prego de ferro, atrás da coluna; depois o estrangeiro fugiu e perdeu-se na multidão. Jesus, porém, caiu desfalecido, ao pé da coluna, sobre a terra empapada de sangue. Os carrascos deixaram-nO lá e foram beber, depois de chamar os auxiliares do carrasco, que estavam no posto de guarda, ocupados em trançar a coroa de espinhos.
Jesus torcia-se ainda de dor, ao pé da coluna, as chagas a sangrar; nesse momento vi passar perto algumas raparigas libertinas, com as vestes imprudentemente arregaçadas; estavam de mãos dadas e pararam diante de Jesus, olhando-O com repugnância melindrosa; com isso sentiu Jesus ainda mais as feridas e levantou para elas o rosto ensangüentado, com um olhar suplicante; então se afastaram, continuando o caminho e os carrascos e soldados dirigiram-lhes, entre gargalhadas, palavras indecentes.
Vi várias vezes, durante a flagelação, aparecerem Anjos tristes em redor de Jesus; ouvi a oração que o Senhor dirigia ao Pai eterno, no meio dos tormentos e insultos, oferecendo-se para expiação dos pecados dos homens. Mas nesse momento, quando jazia, banhado em sangue, ao pé da coluna, vi um anjo, que lhe restituía as forças; parecia dar-Lhe um alimento luminoso.
Então se aproximaram novamente os carrascos e dando-Lhe pontapés, mandaram-nO levantar-se, dizendo que ainda não tinham acabado com o rei; querendo ainda bater-Lhe, arrastou-se Jesus pelo chão, para alcançar a faixa de pano e cobrir a nudez; mas os perversos celerados empurravam-na com os pés para lá e para cá, rindo-se de ver Jesus em sangrenta nudez arrastar-se penosamente, como um verme esmagado, para alcançar o pano e cobrir o corpo dilacerado.
Depois O impeliram, a pontapés e pauladas, a levantar-se sobre as pernas vacilantes; não Lhe deram tempo de vestir a túnica, mas lançaram-lha sobre os ombros e Jesus enxugou nela o sangue do rosto, enquanto O conduziram apressadamente ao corpo da guarda, dando uma volta. Podiam tê-Lo levado por um caminho mais curto, porque as arcadas e edifícios em redor do fórum eram abertos, de modo que se podia enxergar o corredor sob o qual jaziam presos os dois ladrões e Barrabás; mas passaram com Jesus diante dos sumos sacerdotes, que gritavam: “Levai-O à morte! Levai-o à morte!” e viraram a cabeça com nojo. Conduziram-nO para o pátio interior do corpo da guarda. Quando Jesus entrou, não havia lá soldados, mas escravos, soldados e marotos, a escória do povo.
Vendo que o povo estava tão agitado, Pilatos mandara vir reforço da cidadela Antônia. Essas forças cercavam em boa ordem o corpo da guarda; podiam falar, rir e insultar a Jesus, mas não sair das fileiras. Pilatos queria com eles manter o povo em respeito. Podia bem haver lá mil homens.
Maria Santíssima durante a flagelação
Vi a SS. Virgem, durante a flagelação do Redentor, em contínuo êxtase; via e sofria na alma e com indizível amor e tormento, tudo quanto sofria o Divino Filho.
Muitas vezes Lhe saíram fracos gemidos da boca; os olhos estavam inflamados de tanto chorar. Jazia velada nos braços da irmã mais velha, Maria Helí, que já era muito idosa e se parecia muito com a mãe, Sant' Ana.
Maria, filha de Cleofas e de Maria Helí, estava também presente e segurava sempre o braço de sua mãe. As santas amigas de Maria e Jesus, todas veladas e envolvidas em mantos, rodeavam a SS. Virgem, tremendo de medo e dor, como se esperassem sua própria sentença de morte.
Maria vestia uma longa veste azul e sobre essa, um comprido manto branco de lã e um véu branco-amarelo. Madalena estava desnorteada e desolada de dor e lamentação; tinha o cabelo em desalinho, sob o véu.
Quando Jesus, depois da flagelação, caíra ao pé da coluna, mandara Cláudia Prócula, a mulher de Pilatos, um fardo de grandes panos à Mãe de Deus. Não sei mais se julgava que Jesus ficaria livre e a Mãe do Senhor Lhe devia tratar as feridas com esses panos ou se a pagã compadecida mandou os panos para o fim para o qual a SS. Virgem os empregou.
Maria, voltando a si, viu passar o Divino Filho dilacerado, conduzido pelos soldados; Ele enxugou o sangue dos olhos com a túnica, para fitar a SS. Virgem, que Lhe estendeu as mãos, num transporte de dor e Lhe seguiu com a vista as pegadas sangrentas.
Logo depois vi a SS. Virgem e Madalena, quando o povo se dirigia mais para o outro lado, aproximarem-se do lugar da fIagelação. Cercadas e ocultas pelas outras santas mulheres e outra gente boa, que se aproximara, prostraram-se por terra, ao pé da coluna da fIagelação e apanharam com os panos todo o sangue de Jesus, por toda a parte onde encontraram algum vestígio.
Não vi nessa hora João, junto das santas mulheres, que eram cerca de vinte. O filho de Simeão, o de Obed e o de Verônica, como também Aram e Temeni, os sobrinhos de José de Arimatéia, estavam todos ocupados no Templo, cheios de tristeza e angústia.
Foi pelas nove horas da manhã que acabou a flagelação.
Vi hoje as faces da SS. Virgem (10) pálidas e mortiças, o nariz delgado e comprido, os olhos quase cor de sangue, de tantas lágrimas que derramou; não é possível descrever a impressão que faz a figura de Maria, na sua simplicidade e graça natural.
Já desde ontem e durante toda a noite, tem Ela vagueado, cheia de angústia e amor, pelo vale de Josafá e pelas ruas de Jerusalém e através do povo e contudo não se Lhe vê nenhuma desordem nas vestes; cada prega do vestido da SS. Virgem respira santidade; tudo Nela é simples e digno, puro e inocente. Os movimentos, ao olhar em redor de Si, são nobres e as pregas do véu, quando vira um pouco a cabeça, são de uma singular beleza e simplicidade.
Nos movimentos não se Lhe nota agitação e mesmo na mais dilacerante dor, todo o porte se Lhe conserva simples e calmo. Tem o manto umedecido pelo orvalho da noite e por inúmeras lágrimas, mas em tudo mais está limpo e bem arrumado. É inefavelmente bela e de uma beleza toda sobrenatural; pois toda Sua beleza é também pureza, simplicidade, dignidade e santidade.
Madalena, porém, tem um aspecto inteiramente diferente. É mais alta e mais gorda e chama mais a atenção pelas formas e os movimentos; mas toda a beleza lhe foi devastada pelas paixões, pelo arrependimento e excessiva dor; quase causa horror vê-la, tanto se tornou desfigurada, pela veemência sem limite de sua dor.
Tem as vestes molhadas e sujas de lama, em desarranjo e rasgadas; o longo cabelo cai-lhe solto e em desalinho, sob o véu molhado e amarrotado. Está toda desfigurada e agitada; não pensa senão em sua dor, e parece quase uma alienada.
Há muita gente aqui de Magdala e arredores, que a viu dantes, na vida tão suntuosa e depois tão pecaminosa e em seguida tanto tempo retirada do mundo e agora a apontam com o dedo e a insultam, ao ver-lhe a estranha figura; há também gente baixa de Magdala que, ao passar por ela, lhe atira lama, mas Madalena não o nota, tão absorta está na sua dor.
* Anna Catharina descreve uma vez Maria Santíssima do modo seguinte: "Madalena é mais alta e mais bonita do que as outras mulheres. Dina, a samaritana, é também bonita, mas muito mais ativa e ágil do que Madalena; é muito viva, amável e serviçal por toda a parte, como uma criada ligeira, prudente e carinhosa e também muito humilde.
A Santíssima Virgem, porém, excede todas as outras em maravilhosa beleza. Posto que no porte tenha igual em beleza, e seja superada pela figura de Madalena, com suas maneiras estranhas, entretanto, Maria sempre Se distingue entre as outras, pela indescritível modéstia, singeleza, simplicidade, mansidão, dignidade e calma; é tão pura e tão simples, que se tem a impressão de ver Nela a imagem de Deus no homem.
Não há caráter que se Lhe pareça, senão o de Seu Filho. O rosto da Santíssima Virgem, porém, excede em indizível encanto o de todas as mulheres que A acompanham e das que jamais tenho visto.
Impressiona pelo porte digno e grave e contudo parece uma criança inocente e singela. É muito séria, silenciosa, muitas vezes triste, mas nunca Se mostra desordenada na dor; apenas as lágrimas Lhe correm brandamente pelo rosto calmo."
Em outra ocasião Anna Catharina diz: "Maria era imensamente simples. Jesus não A distinguia diante dos outros homens, senão tratando-A sempre com muita dignidade.
Ela também não procurava contato com os homens, com exceção de doentes e ignorantes e apresentava-Se sempre muito humilde, recolhida, muito calma e simples.
Todos, até os inimigos de Jesus, A estimavam e contudo Ela não procurava ninguém, permanecia silenciosa e sozinha.
Jesus é coroado de espinhos e escarnecido pelos soldados
Durante a flagelação falou Pilatos ainda várias vezes ao povo, que uma vez até gritou: “Ele deve morrer, ainda que todos nós também pereçamos.” Quando Jesus foi conduzido ao corpo da guarda, para ser coroado de espinhos, ainda gritaram: “Morra! Morra!” pois chegavam cada vez novas turbas de judeus, que pelos emissários dos sumos sacerdotes eram incitados a gritar assim.
Houve depois uma curta pausa. Pilatos deu ordens aos soldados. Os sumos sacerdotes e os conselheiros, que estavam sentados em bancos, de ambos os lados da rua, à sombra das árvores ou sob lonas estendidas, diante do terraço de Pilatos, mandaram os criados trazer alimentos e bebida. Vi também Pilatos de novo perturbado pela superstição; retirou-se sozinho, para oferecer incenso aos deuses e por certos sinais descobrir-lhes a vontade.
Vi que depois da flagelação a Santíssima Virgem e as amigas, tendo enxugado o sangue de Jesus, se afastaram do fórum. Vi-as com os panos ensanguentados, numa pequena casa encostada a um muro; não era longe do fórum; não me lembro mais de quem era. Não me recordo de ter visto João durante a flagelação. Jesus foi coroado de espinhos e escarnecido no pátio interior do corpo da guarda, construído sobre os cárceres, ao lado do fórum. Esse pátio era cercado de colunas e todas as entradas tinham sido abertas.
Havia ali cerca de cinquenta miseráveis patifes, sequazes dos soldados, servos dos carcereiros, soldados e auxiliares dos carrascos, escravos e os criminosos que flagelaram Nosso Senhor; esses todos tomaram parte ativa nas crueldades praticadas em Jesus. No começo o povo tentou entrar, mas pouco depois cercaram mil soldados romanos o edifício.
Permaneciam nas fileiras, mas com as zombarias e risos provocavam ainda o cruel exibicionismo dos carrascos para redobrarem as torturas de Jesus, animando-os com as risadas, como o aplauso anima os atores no palco. Rolaram para o meio do pátio o pedestal de uma velha coluna, no qual havia um buraco, que talvez tivesse servido para nele ajustar a coluna.
Nesse pedestal colocaram um escabelo redondo e baixo, que por detrás tinha uma espécie de cabo, para o manejar; por maldade cobriram o escabelo de pedregulho agudo e cacos de louça. Arrancaram de novo toda a roupa do corpo ferido de Jesus e impuseram-Lhe um manto de soldado, curto, vermelho, velho e já roto, que nem Lhe chegava até os joelhos. Pendiam dele ainda alguns restos de borlas amarelas; jazia num canto do quarto dos verdugos, que costumavam impô-lo aos que tinham açoitado, seja para enxugar-lhes o sangue, seja para escarnecê-los.
Arrastaram a Jesus para a coluna e empurraram-nO brutalmente, com o corpo despido e ferido, sobre o escabelo coberto de pedras e cacos. Depois Lhe puseram a coroa de espinhos na cabeça. Essa tinha dois palmos de altura, era muito espessa e trançada com arte; em cima tinha uma borda um pouco saliente.
Puseram-lha em redor da fronte, como uma ligadura e ataram-na atrás com muita força, de modo que formavam uma coroa ou um chapéu. Era artisticamente trançada de três varas de espinheiro, da grossura de um dedo, que tinham crescido alto, através dos espessos arbustos. Os espinhos, pela maior parte, foram propositalmente virados para dentro. Pertenciam a três diferentes espécies de espinheiros, que tinham alguma semelhança com a nossa cambroeira, o abrunheiro e espinheiro branco.
Em cima tinham acrescentado uma borda, trançada de um espinheiro semelhante à nossa sarça silvestre e pela qual pegavam e puxavam brutalmente a coroa. Vi o lugar onde os meninos foram buscar esses espinhos. Puseram-Lhe também na mão um grosso caniço, com um tufo na ponta. Fizeram tudo isso com solenidade derrisória, como se O coroassem de fato rei.
Tiravam-Lhe o caniço da mão e batiam com tanta força a coroa, que os olhos de Nosso Senhor se enchiam de sangue. Curvavam os joelhos diante dEle, mostravam-Lhe a língua, batiam e cuspiam-Lhe no rosto, gritando: “Salve, rei dos judeus!” Depois, entre gargalhadas, fizeram-nO cair no chão, junto com o escabelo e tornaram a colocá-Lo sobre Ele aos empurrões.
Não posso relatar todas as torturas e ultrajes que os carrascos inventaram, para escarnecer o pobre Salvador. Ai! Jesus sofreu horrível sede; pois em conseqüência das feridas, causadas pela desumana flagelação, estava com febre e tremia; a pele e os músculos dos lados estavam dilacerados o deixavam entrever as costelas em vários lugares; a língua contraíra-se-Lhe espasmodicamente; somente o Sangue Sagrado que Lhe corria da fronte, compadecia-se da boca ardente, que se abria ansiosa.
Mas aqueles homens horríveis tomaram-Lhe a boca divina por alvo de nojentos escarros. Jesus foi assim maltratado por cerca de meia hora e a tropa, cujas fileiras cercavam o pretório, aplaudia com gritos e gargalhadas.
Jesus no Monte Gólgota. Sexta e sétima queda de Jesus e seu encarceramento
O séquito pôs-se novamente em caminho. Jesus, curvado sob a cruz, impelido a empurrões e golpes, arrastado pelas cordas, subiu penosamente o áspero caminho que segue para o norte, entre o monte Calvário e os muros da cidade; depois, no alto, se volta o caminho tortuoso outra vez para o sul. Lá caiu Jesus, tão enfraquecido, pela sexta vez, foi uma queda dura e a cruz, ao cair, ainda mais o feriu. Os carrascos, porém, espancaram e impeliram-no com mais brutalidade do que antes, até que Jesus chegou ao cume, no penedo do Gólgota e ali caiu novamente com a cruz por terra, pela sétima vez.
Simão Cirineu, também maltratado e cansado, estava cheio de indignação e compaixão; quis ajudar Jesus a levantar-se, mas os carrascos, aos empurrões e insultos, fizeram-no voltar pelo caminho, morro abaixo; pouco depois se associou aos discípulos do Mestre Divino. Também os outros que trouxeram os instrumentos ou seguiram o cortejo e de que os carrascos não precisavam mais, foram enxotados do cume. Os fariseus a cavalo subiram o monte Calvário por outros caminhos, mais cômodos, do lado oeste. Do cume se avistam justamente os muros da cidade.
A face superior, o lugar do suplício, tem a forma circular e caberia bem no largo diante da nossa Matriz; é do tamanho de um bom picadeiro e cercado de um aterro baixo, cortado por cinco caminhos. Essa disposição de cinco caminhos encontra-se em quase todos os lugares do país, em lugares de banhos públicos ou de batismo, como na piscina Betesda; muitas cidades também têm cinco portas. Essa disposição acha-se em todas as construções dos tempos antigos e também em mais modernos e assim foram feitas em atenção as antigas tradições. Como em todas as coisas da Terra Santa, há também nisso um profundo sentido profético, cumprido nesse dia, em que se abriram os cinco caminhos de toda a salvação, as cinco sagradas Chagas de Jesus.
Os fariseus a cavalo pararam fora do círculo, no lado oriental do monte, onde o declive é mais suave; o lado que dá para a cidade e por onde eram conduzidos os condenados, é escarpado e íngreme. Estavam ali também cem soldados romanos, nativos das fronteiras entre a Itália e a Suíça, que estavam distribuídos em parte em vários lugares da execução. Alguns ficaram com os dois ladrões, que, por falta de lugar no cume, não tinham levado para cima, mas fizeram deitar de costas, com os braços amarrados aos madeiros transversais das cruzes, na encosta do monte, um pouco abaixo do cume, onde o caminho vira para o sul.
Muita gente, na maior parte das classes baixas, estrangeiros, servos, escravos, pagãos e muitas mulheres, gente que não se importava de contaminar-se, juntavam-se em redor do largo do cume ou formavam grupos, cada vez mais numerosos, nas alturas circunvizinhas, acrescidos de gente que se dirigia a cidade. Para oeste, ao pé do monte Gihon, havia um grande acampamento de forasteiros, vindos para a festa da Páscoa; muitos ficavam olhando de longe, outros se aproximavam pouco a pouco.
Eram cerca de onze horas e três quartos, quando Jesus arrastado com a cruz para o lugar do suplício, caiu por terra e Simão foi expulso de lá. Os carrascos levantaram o Salvador aos arrancos das cordas e desligaram os madeiros da cruz, jogando-os no chão, um em cima do outro. Ai! Que aspecto terrível apresentava Jesus, em pé no lugar do suplício, abatido, triste, coberto de feridas, ensanguentado, pálido. Os carrascos deitaram-no brutalmente por terra, dizendo em tom de mofa (gozação): “Ó rei dos judeus, devemos tomar medida de teu trono?”
Mas Jesus deitou-se de livre vontade sobre a cruz e se a fraqueza lho tivesse permitido, os carrascos não teriam tido necessidade de jogá-lo por terra. Estenderam-no sobre a cruz e marcaram nesta os lugares das mãos e dos pés, enquanto os fariseus em redor riam e insultavam o Divino Salvador.
Levantando-o novamente, conduziram-no amarrado uns setenta passos ao norte, descendo a encosta do monte Calvário, a uma fossa cavada na rocha, que parecia uma cisterna ou adega; levantando o alçapão, empurraram-no para dentro tão brutalmente, que se não fosse por auxílio divino, teria chegado ao fundo duro da rocha com os joelhos esmagados. Ouvi-lhes os gemidos altos e agudos.
Fecharam o alçapão e deixaram uma guarda. Segui-O nesses setenta passos; parece-me lembrar ainda de uma revelação sobrenatural de que os anjos o socorreram, para que não esmagasse os joelhos; mas a pobre vítima gemia e chorava de modo que cortava o coração. A rocha amoleceu, ao contado dos joelhos sagrados do Redentor.
Os carrascos começaram então os preparativos.
Jesus é pregado na Cruz
Jesus, imagem viva da dor, foi estendido pelos carrascos sobre a cruz; Ele próprio se sentou sobre ela e eles brutalmente O deitaram de costas. Colocaram-Lhe a mão direita sobre o orifício do prego, no braço direito da cruz e aí lhe amarraram o braço. Um deles se ajoelhou sobre o santo peito, enquanto outro lhe segurava a mão, que se estava contraindo e um terceiro colocou o cravo grosso e comprido, com a ponta limada, sobre essa mão cheia de bênção e cravou-o nela, com violentas pancadas de um martelo de ferro. Doces, e claros gemidos ouviram-se da boca do Senhor; o sangue sagrado salpicou os braços dos carrascos; rasgaram-Lhe os tendões da mão, os quais foram arrastados, com o prego triangular, para dentro do estreito orifício. Contei as marteladas, mas esqueci, na minha dor, esse número. A Santíssima Virgem gemia baixinho e parecia estar sem sentidos exteriormente; Madalena estava desnorteada.
As verrumas eram grandes peças de ferro, da foram de um T; não havia nela nada de madeira. Também os pesados martelos eram, como os cabos, de ferro e todos de uma peça inteiriça; tinham quase a forma dos martelos de pau que os marceneiros usam entre nós, trabalhando com formão.
Os cravos, cujo aspecto fizera tremer Jesus, eram de tal tamanho que, seguros pelo punho, excediam em baixo e em cima cerca de uma polegada. Tinham cabeça chata, da largura de uma moeda de cobre, com uma elevação cônica no meio. Tinham três gumes; na parte superior tinham a grossura de um polegar e na parte inferior a de um dedo pequeno; a ponta fora aguçada com uma lima; cravados na cruz, vi-lhes a ponta sair um pouco do outro lado dos braços da cruz.
Depois de terem pregado a mão direita de Nosso Senhor, viram os crucificadores que a mão esquerda, que tinham também amarrado ao braço da cruz, não chegava até o orifício do cravo, que tinham perfurado a duas polegadas distante das pontas dos dedos. Por isso ataram uma corda ao braço esquerdo do Salvador e, apoiando os pés sobre a cruz, puxaram a toda força, até que a mão chegou ao orifício do cravo. Jesus dava gemidos tocantes; pois deslocaram-Lhe inteiramente os braços das articulações; os ombros, violentamente distendidos, formavam grandes cavidades axilares, nos cotovelos se viam as junturas dos ossos.
O peito levantou-se-Lhe e as pernas encolheram-se sobre o corpo. Os carrascos ajoelharam-se sobre os braços e o peito, amarram-lhe fortemente os braços e cravaram-Lhe então cruelmente o segundo prego na mão esquerda; jorrou alto o sangue e ouviram-se os agudos gemidos de Jesus, por entre as pancadas do pesado martelo. Os braços do Senhor estavam tão distendidos, que formavam uma linha reta e não cobriam mais os braços da cruz, que subiam em linha obliqua; ficava um espaço livre entre esses e as axilas do Divino Mártir.
A SS. Virgem sentiu todas essas torturas com Jesus; estava de uma palidez cadavérica e fracos gemidos saiam-lhe da boca. Os fariseus dirigiram insultos e zombarias para o lado onde ela estava; por isso os amigos conduziram-na para junto das outras santas mulheres, que estavam um pouco mais afastadas do lugar do suplício. Madalena estava como louca; feria o rosto de modo que tinha as faces e os olhos cheios de sangue.
Havia na cruz, em baixo, talvez a um terço da respectiva altura, uma peça de madeira, fixa por um prego muito grande, destinada a suportar os pés de Jesus, afim de que ficasse mais em pé do que suspenso; de outro modo as mãos teriam sido rasgadas pelo peso do corpo e os pés não poderiam ser pregados sem quebrá-los. Nessa peça de madeira tinham perfurado o orifício para o cravo. Tinham também feito uma cavidade para os calcanhares, como também havia outras, em vários pontos da cruz, para que o Mártir pudesse ficar suspenso mais tempo e o peso do corpo não Lhe rasgasse as mãos, fazendo-O cair.
Todo o corpo de nosso Salvador tinha-se contraído para o alto da cruz, pela violenta extensão dos braços e os joelhos tinham-se-Lhe dobrado. Os carrascos lançaram-se então sobre esses e, por meio de cordas, amarraram-nos ao tronco da cruz; mas pela posição errada dos orifícios dos cravos, os pés ficavam longe da peça de madeira que os devia suportar. Então começaram os carrascos a praguejar e insultar. Alguns julgavam que se deviam furar outros orifícios para os pregos das mãos; pois mudar o suporte dos pés era difícil. Outros fizeram horrível troça de Jesus: “Ele não quer estender-se, disseram, mas nós Lhe ajudaremos”.
Atando cordas à perna direita, puxaram-na com horrível violência, até o pé tocar no suporte e amarraram-na à cruz. Foi uma deslocação tão horrível, que se ouvia estalar o peito de Jesus, que gemia alto: “Ó meu Deus! Meu Deus!” Tinham-Lhe amarrado também o peito e os braços, para os pregos não rasgarem as mãos; o ventre encolheu-se-Lhe inteiramente, as costelas pareciam a ponto de destacar-se do esterno. Foi uma tortura horrorosa.
Amarraram depois o pé esquerdo com a mesma brutal violência, colocando-o sobre o pé direito e como os pés não repousavam com bastante firmeza sobre o suporte, para serem pregados juntos, perfuraram primeiro o peito do pé esquerdo com um prego mais fino e de cabeça mais chata do que os cravos, como se fura a sovela. Feito isso, tomaram o cravo mais comprido que o das mãos, o mais horrível de todos e, passando-o brutalmente pelo furo feito no pé esquerdo, atravessaram-lhe a marteladas o direito, cujos ossos estalavam, até o cravo entrar no orifício do suporte e, através desse, no tronco da cruz. Olhando de lado a cruz, vi como o prego atravessou os dois pés.
Essa tortura era a mais dolorosa de todas, por causa da distensão de todo o corpo. Contei 36 golpes de martelo, no meio dos gemidos claros e penetrantes do pobre Salvador; as vozes em redor, que proferiam insultos e maldições, pareciam-me sombrias e sinistras.
A Santíssima Virgem tinha voltado ao lugar do suplício; a deslocação do corpo do Filho adorado, o som das marteladas e os gemidos de Jesus, causaram-lhe tão veemente dor e compaixão, que caiu novamente nos braços das companheiras, o que provocou um ajuntamento de povo.
Então acorreram alguns fariseus a cavalo, insultando-as e os amigos afastaram-na outra vez a alguma distância. Durante a crucifixão e a elevação da cruz, que se lhe seguiu, se ouviam, especialmente entre as mulheres, gritos de compaixão, como: “Porque a terra não traga esses miseráveis? Porque não cai fogo do céu, para os devorar?” - A essas manifestações de amor respondiam os carrascos com insultos e escárnio.
Os gemidos que a dor arrancava de Jesus, misturavam-se com contínua oração; recitava trechos dos salmos e dos profetas, cujas predições nessa hora cumpria; em todo o caminho da cruz, até à morte, não cessava de rezar assim e de cumprir as profecias. Ouvi e rezei com Ele todas essas passagens e às vezes me lembro delas, quando rezo os salmos; mas fiquei tão acabrunhada com o martírio de meu Esposo celeste, que não sei mais juntá-las. – Durante esse horrível suplício, vi Anjos a chorar aparecerem acima de Jesus.
O comandante da guarda romana fizera pregar no alto da cruz a tábua, como título que Pilatos escrevera. Os fariseus estavam indignados porque os romanos se riam alto do título “Rei dos judeus”. Por isso voltaram alguns fariseus à cidade, depois de ter tomado medida para uma outra inscrição, para pedir a Pilatos novamente outro título.
Enquanto Jesus era pregado à cruz, estavam ainda alguns homens a trabalhar na escavação em que a cruz devia ser colocada; pois era estreita a cova e a rocha muito dura. Alguns dos carrascos, em vez de dar a Jesus para beber o vinho aromático trazido pelas santas mulheres, beberam-no eles mesmos e ficaram embriagados; queimava-lhe as entranhas e causava-lhes tanta dor nos intestinos, que ficaram desvairados; insultavam a Jesus, chamando-O de feiticeiro e enfureciam-se à vista da paciência do Divino Mestre; desceram várias vezes o Calvário, a correr, para beber leite de jumenta. Havia lá perto algumas mulheres, que pertenciam a um acampamento de peregrinos, vindos para a festa da Páscoa, as quais tinham jumentas, cujo leite vendiam.
Pela posição do sol era cerca de doze horas e um quarto, quando Jesus foi crucificado. No momento em que elevaram a cruz, ouviu-se do Templo o soar de muitas trombetas: Era a hora em que imolavam o cordeiro pascal.
Elevação da cruz.
Depois de terem pregado Nosso Senhor à cruz, ataram cordas na parte superior da mesma, por meio de argolas, lançaram as cordas sobre o cavalete antes erigido no lado oposto e puxaram a cruz pelas cordas, de modo que a parte superior se lhe ergueu; alguns dirigiram-se com paus munidos de ganchos, que fincaram no tronco e fizeram o pé da cruz entrar na cova. Quando o madeiro chegou à posição vertical, entrou na escavação com todo o peso e tocou no fundo com um terrível choque. A cruz tremeu do abalo e Jesus soltou um grito de dor; pelo peso vertical desceu-lhe o corpo, as feridas alargaram-se-Lhe, o sangue corria mais abundantemente e os ossos deslocados entrechocaram-se. Os carrascos ainda sacudiram a cruz, para a por mais firme e fincaram cinco cunhas na nova, em redor da cruz: uma na frente, uma do lado direito, outra do lado esquerdo e duas atrás, onde o madeiro estava um pouco arredondado.
Foi uma impressão terrível e ao mesmo tempo comovedora, quando, sob os gritos insultuosos dos carrascos e dos fariseus, como também de muitos homens do povo, mais afastados, a cruz se elevou, balançando e entrou estremecendo na escavação; ouviram-se também vozes piedosas de compaixão, as vozes mais santas da terra: a da Mãe Santíssima, de João, das amigas e de todos que tinham um coração puro, saudaram com expressão dolorosa o Verbo eterno, feito carne e elevado sobre a cruz. Estenderam as mãos ansiosamente como para o segurar, quando o Santo dos santos, o Esposo de todas as Almas, pregado vivo na cruz, foi elevado pelas mãos dos pecadores enfurecidos.
Quando, porém, o madeiro erguido com estrondo, entrou na respectiva cova, houve um momento de silêncio solene; todo o mundo parecia experimentar uma sensação nova, nunca até então sentida. O próprio inferno sentiu assustado o choque do lenho sobre a rocha e levantou-se contra ele, redobrando nos seus instrumentos humanos o seu furor e os insultos. Nas almas do purgatório e do limbo, porém, causou alegria e esperança: soava-lhes como o bater do triunfador às portas da Redenção. A santa Cruz estava pela primeira vez plantada no meio da terra, como aquela árvore da vida no Paraíso e das chagas dilatadas do Cristo corriam quatro rios santos sobre a terra, para expiar a maldição, que pesava sobre ela e para fertilizar e a tornar um paraíso do novo Adão.
Quando o nosso Salvador foi elevado na cruz e os gritos de insulto foram interrompidos por alguns minutos de silencioso espanto, ouvia-se do Templo o som de muitas trombetas, que anunciavam o começo da imolação do cordeiro pascal, do símbolo, interrompendo de um modo solene e significativo os gritos de furor e de dor, em redor do verdadeiro Cordeiro de Deus, imolado na cruz. Muitos corações endurecidos foram abalados e pensaram nas palavras do precursor, João Batista: “Eis aí o Cordeiro de Deus, que tomou sobre si os pecados do mundo”.
O lugar onde fora plantada a cruz, estava elevado cerca de dois pés acima do terreno em redor. Quando a cruz ainda se achava fora da cova, estavam os pés de Jesus à altura de um homem, mas depois de introduzida na respectiva escavação, podiam os amigos chegar aos pés do Mestre, para os abraçar e beijar. Havia um caminho para essa elevação. O rosto de Jesus estava virado para nordeste.
A crucificação dos ladrões.
Durante a crucifixão do Senhor jaziam os ladrões, de costas, com as mãos ainda amarradas aos madeiros transversais das cruzes, que tinham sobre a nuca, ao lado do caminho, na encosta oriental do Calvário; estava com eles na guarda. Suspeitos de terem assassinado uma mulher judaica, com os filhos, no caminho de Jerusalém a Jope, foram presos num castelo daquela região, onde morava às vezes Pilatos, por ocasião das manobras do exército e onde se apresentaram como ricos negociantes. Tinham estado muito tempo no cárcere, antes do julgamento e da condenação. Esqueci os pormenores. O ladrão do lado esquerdo era o mais velho e grande criminoso, o sedutor e mestre do outro. Geralmente são chamados Dimas e Gesmas; esqueci-lhes os nomes verdadeiros; vou chamar, por isso, ao bom Dimas e ao mau Gesmas.
Ambos pertenciam à quadrilha de salteadores que, nas fronteiras do Egito, tinham dado agasalho à Sagrada Família, com o menino Jesus, na fuga para o Egito. Dimas fora o menino morfético que, a conselho de Maria, fora lavado pela mãe na água em que o menino Jesus se tinha banhado e que ficara curado no mesmo instante. A caridade e a proteção que a mãe proporcionara à Sagrada Família, fora recompensada naquela ocasião pela cura simbólica, que se realizou na cruz, quando foi limpo pelo sangue de Jesus. Dimas caíra em muitos crimes, mas não era perverso; não conhecia Jesus, a paciência do Senhor comoveu-o.
Enquanto jaziam por terra, falava sem cessar de Jesus com o companheiro: “Maltratam horrivelmente este Galileu, dizia, o que Ele fez, pregando a nova doutrina, deve se pior do que os nossos crimes; mas Ele tem grande paciência e poder sobre todos os homens”. – Gesmas respondeu: “Que poder tem? Se fosse tão poderoso, como dizem, podia salvar-nos todos”. Desse modo continuavam a falar e quando a cruz do Senhor foi elevada, vieram carrascos dizer-lhes: “Agora é a vossa vez” e arrastaram-nos para o lugar do suplício. Desamarraram-nos dos madeiros transversais a toda a pressa, pois o sol já se escurecia e havia um movimento na natureza: como se uma tempestade se aproximasse.
Os carrascos encostaram escadas às árvores das cruzes e ajustaram os lenhos transversais em cima, com cavilhas. No entanto deram a beber aos ladrões vinagre misturado com mirra e vestiram-lhe o gibão já roto, ataram-lhes cordas nos braços e lançando-as sobre os braços da cruz, puxaram-nos para cima, obrigando-os, a pancadas e pauladas, a subir pelos paus que estavam fincados no tronco das cruzes. Nos madeiros transversais e nos troncos já estavam amarradas as cordas, que pareciam ser feitas de cortiça torcida.
Os braços dos condenados foram amarrados aos madeiros transversais; ataram-lhes os pulsos e cotovelos, como também os joelhos e os pés à cruz e apertaram-nos com tanta violência, torcendo as cordas por meio de paus, que os ossos estalavam e o sangue lhes esguichou dos músculos. Os infelizes soltaram gritos horríveis e Deimas, o bom ladrão, disse: “Se nos tivésseis tratado como a este Galileu, não teríeis mais o trabalho de puxar-nos aqui para cima”.
Jesus crucificado e os ladrões.
Depois do violento choque da cruz, a cabeça de Jesus, coroada de espinhos, foi fortemente abalada e derramou grande abundância de sangue; também das chagas das mãos e dos pés correu o sangue em torrentes. Os carrascos subiram então pelas escadas e desataram as cordas com que tinham amarrado o santo corpo, para que o abalo não o fizesse cair. O sangue, cuja circulação fora quase impedida pela forte pressão das cordas e pela posição horizontal, afluiu-Lhe então de novo por todo o corpo e as chagas, renovando todas as dores e causando-Lhe um forte atordoamento. Jesus deixou cair a cabeça sobre o peito e ficou suspenso como morto, cerca de sete minutos.
Houve um momento de calma. Os carrascos estavam ocupados em repartir as vestes de Jesus; o som das trombetas perdia-se no ar, todos os assistentes estavam exaustos de raiva ou de dor. Olhei, cheia de susto e compaixão, para meu Jesus, meu Salvador, a Salvação do mundo; vi-O imóvel, desfalecido de dor, como morto e eu também estava à morte; pensava antes morrer do que viver.
Minha alma estava cheia de amargura, de amor e dor; minha cabeça, que eu sentia cercada de uma rede de espinhos, fazia-me quase endoidecer de dor; minhas mãos e meus pés eram como fornalhas ardentes; dores indizíveis passavam-me, como milhares de raios, pelas veias e nervos, encontrando-se e lutando em todos os membros interiores e exteriores de meu corpo, tornando-se uma nova fonte de sofrimentos. E todos esses terríveis tormentos não eram senão amor e todo esse fogo penetrante de dores era contudo uma noite, em que não vi senão meu Esposo, o Esposo de todas as almas, pregado à cruz e contemplava-O com muita tristeza e muita consolação.
A cabeça de Jesus, com a horrível coroa, com o sangue que Lhe enchia os olhos, os cabelos, a barba e a boca ardente, meio entreaberta, tinha caído sobre o peito e também mais tarde só podia levantar-se com indizível tortura, por causa da larga coroa de espinhos. O peito do Divino Mártir estava violentamente dilatado e alçado; os ombros, os cotovelos e os pulsos distendidos até saírem fora das articulações; o sangue corria-Lhe das largas feridas das mãos sobre os braços; o peito levantado deixava em baixo uma cavidade profunda; o ventre estava encolhido e diminuído; como os braços, estavam também as coxas e pernas horrivelmente deslocadas.
Os membros estavam tão horrivelmente distendidos e os músculos e a pele a tal ponto esticados, que se podiam contar os ossos. O sangue escorria-Lhe em redor do enorme prego que Lhe traspassava os pés sagrados, regando a árvore da cruz. o santo corpo estava todo coberto de chagas, pisaduras vermelhas, manchas amarelas, pardas e roxas, inchaços e lugares escoriados. As feridas reabriram-se, pela violenta distensão dos músculos e sangravam em vários lugares; o sangue que corria, era a princípio ainda vermelho, mas pouco a pouco se tornou pálido e aquoso e o santo corpo cada vez mais branco; por fim, tomou a cor da carne em sangue.
Mas, apesar de toda essa cruel desfiguração, o corpo de Nosso Senhor na cruz tinha um aspecto extremamente nobre e comovedor; na verdade, o Filho de Deus, o Amor Eterno, que se sacrificou no tempo, permaneceu belo, puro e santo nesse corpo do Cordeiro pascal moribundo, esmagado pelo peso dos pecados de toda a humanidade.
A pele da Santíssima Virgem, como a de N. Senhor, tinha por natureza, uma bela cor ligeiramente amarelada, mesclada de um vermelho transparente. As fadigas e as viagens do Mestre nos anos anteriores, lhe tinham tornado as faces, sob os olhos e a cana do nariz um pouco tostadas pelo sol. Jesus tinha um peito largo e forte, branco e sem pêlo, enquanto o de João Batista estava todo coberto de pelo ruivo. Tinha ombros largos e os músculos dos braços bem desenvolvidos; as coxas eram nervosas e musculosas, os joelhos fortes e robustos, como os de um homem que tem andado muito e rezado muito de joelhos.
Tinha as pernas compridas e a barriga das pernas fortes, de muito viajar em terras montanhosas. Os pés eram belos e bem desenvolvidos, a planta dos pés tinha-se tornado calosa, porque geralmente andava descalço por caminhos rudes. As mãos eram de bela forma, com os dedos longos e delgados, não delicados demais, mas também não como as de um homem que as emprega em trabalhos pesados. Não tinha o pescoço curto, mas forte e musculoso. A cabeça tinha boas proporções, não grande demais; a testa era alta e larga e todo o rosto de um belo e puro oval. O cabelo, de um castanho avermelhado, não muito grosso, singelamente repartido no alto da cabeça, caia-Lhe sobre os ombros; a barba não era comprida, mas aparada em ponta e repartida sob o queixo.
Agora, porém, o cabelo fora arrancado em grande parte, o resto colado com sangue; o corpo era uma só chaga, o peito estava como que despedaçado, o ventre escavado e encolhido; em vários lugares se viam as costelas, através da pele lacerada; todo o corpo estava de tal modo distendido e alongado, que não cobria mais inteiramente o tronco da cruz.
O madeiro era um pouco arredondado do lado posterior, na frente liso, com várias escavações; a largura igualava-lhe mais ou menos a grossura. As diversas partes da cruz eram de madeira de diferentes cores, umas pardas, outras amarelas; o tronco era mais escuro, como madeira que tem estado muito tempo na água.
As cruzes dos ladrões, trabalhadas mais grosseiramente, foram instaladas ao lado direito e esquerdo do cume, a tal distância da cruz de Jesus, que um homem podia passar a cavalo entre elas; estavam um pouco mais baixo e colocadas de modo que olhavam um para o outro. Um dos ladrões rezava, o outro insultava Jesus que, olhando para baixo, disse uma coisa a Dinas.
O aspecto dos ladrões na cruz era horrendo, especialmente o do que ficava à esquerda, criminoso enraivecido, embriagado, de cuja boca só saiam insultos e maldições. Os corpos, pendentes da cruz, estavam horrivelmente deslocados, inchados e cruelmente amarrados. Os rostos tornaram-se-lhes roxos e pardos, os lábios escuros, tanto da bebida, como da pressão do sangue; os olhos inchados e vermelhos, quase a sair das órbitas. Soltavam gritos e uivos de dor, que lhes causavam as cordas; Gesmas praguejava e blasfemava.
Os pregos com que os madeiros transversais foram ajustados ao tronco, forçavam-nos a curvar a cabeça, moviam-se e torciam-se convulsivamente na tortura e apesar das pernas estarem fortemente amarradas, um deles conseguiu puxar um pé para cima, de modo que o joelho dobrado se lhe ergueu um pouco.
Primeira palavra de Jesus na cruz.
Depois de crucificar os ladrões e de repartir as vestes do Senhor, juntaram os carrascos todos os instrumentos e ferramentas e, insultado e escarnecendo mais uma vez a Jesus, foram-se embora. Também os fariseus, que ainda estavam, montaram nos cavalos e passando diante de Jesus, dirigiram-lhe muitas palavras insultuosas e seguiram para a cidade. Os cem soldados romanos, com os respectivos comandantes, puseram-se também em mancha, pois veio outro destacamento de cinqüenta soldados romanos, ocupar-lhes o lugar.
Esse destacamento era comandado por Abenadar, árabe de nascimento, que mais tarde, no batismo, recebeu o nome de Ctesifon. O oficial subalterno que estava com essa tropa, chamava-se Cassius; era também muitas vezes encarregado por Pilatos de levar mensagens; recebeu depois o nome de Longinus.
Vieram também a cavalo doze escribas e alguns anciãos do povo, entre os quais os que foram pedir mais uma vez outra inscrição para o título da cruz; Pilatos nem os tinha deixado entrar. Cheios de raiva, andaram a cavalo em redor do lugar do suplício e expulsaram dali a Santíssima Virgem, chamando-a de mulher perdida. João levou-a para junto das outras mulheres, que estavam mais afastadas; Madalena e Marta ampararam-na nos braços.
Quando, fazendo a volta da cruz, chegaram diante de Jesus, balançaram a cabeça, dizendo: “Arre! Impostor! Como é que destróis o Templo e o reedificas em três dias? Queria sempre socorrer os outros e agora não se pode salvar a si mesmo. – Se és o Filho de Deus, desce da cruz. Se é o rei de Israel, então desça da cruz e creremos nEle. Sempre confiava em Deus, que Ele venha salvá-Lo agora”. Os soldados também zombavam, dizendo: “Se és o rei dos judeus, salva-te agora”.
Quando Jesus ainda pendia desmaiado, disse Gesmas, o ladrão à esquerda: “O demônio abandonou-O”. Um soldado fincou então uma esponja embebida em vinagre sobre a ponta de uma vara e chegou-a aos lábios de Jesus, que pareceu chupar um pouco. As zombarias continuavam. O soldado disse: “Se és o rei dos judeus, salva-te.” Tudo isso se deu enquanto o destacamento anterior era substituído pelo de Abenadar.
Jesus levantou um pouco a cabeça e disse: “Meu Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem”; depois continuou a rezar em silêncio. Então gritou Gesmas: “Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós”. Escarneciam-nO sem cessar; mas Dimas, o ladrão da direita, ficou muito comovido, ouvindo Jesus rezar pelos inimigos. Quando Maria ouviu a voz de seu Filho, ninguém mais pôde retê-la: penetrou no círculo do suplício: João, Salomé e Maria, filha de Cléofas, seguiram-na. O centurião não as expulsou.
Dimas, o bom ladrão, obteve pela oração de Jesus uma iluminação Interior, no momento em que a Santíssima Virgem se aproximou. Reconheceu em Jesus e em Maria as pessoas que o tinham curado, quando era criança e exclamou em voz forte e distinta: “O que? É possível que insulteis Àquele que reza por vós? Ele se cala, sofre com paciência, reza por vós e vós o cobris de escárnio? Ele é um profeta, é nosso rei, é o Filho de Deus”. A essa inesperada repreensão da boca de um miserável assassino, suspenso na cruz, deu-se um tumulto entre os escarnecedores; apanhando pedras, quiseram apedrejá-lo ali mesmo. Mas o centurião Abenadar não o permitiu; mandou dispersa-los e restabeleceu a ordem.
Durante esse tempo a Santíssima Virgem se sentia confortada pela oração de Jesus. Dimas, porém, disse a Gesmas, que gritara a Jesus: “Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós” – “Também tu não temes de Deus, apesar de sofreres o mesmo suplício que Ele? Quanto a nós, é muito justo, pois recebemos o castigo de nossos crimes; este, porém, não fez mal algum. Pensa nisto, nesta última hora e converte-te de coração”. Essas palavras e outras mais disse a Gesmas, pois estava todo comovido e iluminado pela graça; confessou suas faltas a Jesus e disse: “Senhor, se me condenardes, será muito justo; mas tende misericórdia de mim”. Respondeu Jesus: “Experimentáras a Minha misericórdia”. Dimas recebeu, por um quarto da hora, a graça de um profundo arrependimento.
Tudo que acabo de contar agora, se deu pela maior parte ao mesmo tempo ou sucessivamente, entre as doze horas e doze e meia, pelo sol, alguns minutos depois da exaltação da cruz. Mas dai a pouco mudaram rapidamente os sentimentos nos corações da maior parte do assistentes; pois enquanto o bom ladrão ainda estava falando, eis que se deu na natureza um fenômeno extraordinário, que encheu de pavor todos os corações.
Quinta, Sexta e Sétima palavras de Jesus na cruz. Morte de Jesus.
Quando a luz voltou, surgiu o corpo de Nosso Senhor, pálido, extenuado, como que inteiramente desfalecido, mais branco do que antes, por causa da grande perda de sangue. Jesus disse ainda, não sei se o percebi só interiormente ou se Ele o disse a meia voz: “Sou espremido como as uvas, que foram pisadas aqui pela primeira vez; devo dar todo o meu sangue, até sair água e o bagaço ficar branco; mas não se fará mais vinho neste lugar”.
Mais tarde vi, numa visão a respeito dessas palavras, que foi nesse lugar que Jafé pela primeira vez pisou as uvas, para fazer vinho, como hei de contar mais tarde.
Jesus consumia-se de sede e disse com a língua seca: “Tenho sede”. E como os amigos o olhassem com tristeza, disse-lhes: “Não me podíeis dar um gole de água?” Queria dizer que durante a escuridão ninguém os teria impedido. João, muito incomodado, respondeu: “Senhor, esquecemo-lo mesmo”. Jesus disse ainda algumas palavras, cujo sentido era: “Também os amigos mais íntimos deviam esquecer-se e não me dar a beber, para que se cumprisse a Escritura”. Mas esse esquecimento Lhe doeu amargamente.
Ofereceram então dinheiro aos soldados, para Lhe dar um pouco de água; eles recusaram, mas um deles tomou uma esponja em forma de pêra, embebedou-a em vinagre, que havia lá num pequeno barril de casca de árvore e ainda lhe misturou fel. Mas o centurião Abenadar, compadecido de Jesus, tomou a esponja do soldado, espremeu-a e embebeu-a de vinagre puro. Ajustou depois um lado da esponja num pedaço curto de uma haste de hissope, que servia de boquilha para chupar, fincou-o na ponta da lança e levantou-a à altura do rosto de Jesus, aproximando-Lhe dos lábios a esponja.
Nosso Senhor ainda disse: “Quando minha voz não se fizer mais ouvir, falará a boca dos mortos”; ao que alguns gritaram: “Ainda continua blasfemando”. Abenadar, porém, os mandou calar.
Tendo chegado a hora da agonia, Nosso Senhor lutou com a morte e um suor frio cobriu-lhe os membros. João estava sob a cruz e enxugou-Lhe os pés com o sudário. Madalena, esmagada pela dor, encostava-se à cruz no lado de trás. A Santíssima Virgem estava entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus, amparada pelos braços de Maria de Cléofas e Salomé, olhando para o Filho, que lutava com a morte. Então disse Jesus: “Tudo está consumado!” e, levantado a cabeça, exclamou em alta voz: “Meu Pai, Em vossas mãos entrego o meu espírito”. Foi um grito doce e forte, que penetrou o Céu e a terra; depois inclinou a cabeça e expirou. Vi a alma de Jesus, em forma luminosa, entrar na terra, ao pé da cruz e descer ao Limbo. João e as santas mulheres prostraram-se com a face na terra.
O centurião Abenadar, árabe de nascimento, depois, como discípulo, batizado com o nome de Ctesifon, desde que oferecera o vinagre a Jesus, ficara a cavalo junto à elevação onde estavam erigidas as cruzes, de modo que o cavalo tinha as patas dianteiras mais no alto. Profundamente abalado, entregue a séries reflexões, contemplava incessantemente o semblante de Nosso Senhor, coroado de espinhos.
O cavalo baixara assustado a cabeça e Abenadar, cujo orgulho estava domado, não puxava mais as rédeas. Nesse momento pronunciou o Senhor as últimas palavras, em voz alta e forte e morreu dando um grito, que penetrou o Céu, a terra e o inferno. A terra tremeu e o rochedo fendeu-se, deixando uma larga abertura entre a cruz do Senhor e a do ladrão à esquerda. O testemunho que Deus deu de seu Filho, abalou com susto e terror a natureza enlutada. Estava consumado!
A alma de Nosso Senhor separou-se do corpo e ao grito de morte do Redentor moribundo estremeceram todos que O ouviram, junto com a terra que, tremendo, reconheceu o Salvador; os corações amigos, porém, foram transpassados pela espada da dor. Foi então que a graça desceu à alma de Abenadar; estremeceu emocionado, cederam-lhe as paixões e o coração orgulhoso e duro, fendeu-se-lhe como o rochedo do Calvário. Lançou longe de si a lança, bateu no peito com força e exclamou alto, com a voz de um homem novo: “Louvado seja Deus, Todo-poderoso, o Deus de Abraão e Jacó! Este era um homem justo; em verdade, Ele é o Filho de Deus!” E muitos dos soldados, tocados pela palavra do centurião, fizeram o mesmo.
Abenadar, tornado novo homem, salvo pela graça e tendo rendido publicamente homenagem ao Filho de Deus, não quis ficar mais tempo a serviço dos inimigos de Cristo, Dirigiu-se a cavalo ao oficial subalterno, Cássio, também chamado Longinus, apeou-se, apanhou a lança e entregou-lha; disse algumas palavras aos soldados e a Cássio, que então montou a cavalo e tomou o comando. Abendar desceu do Calvário e, atravessando a vele de Gihon, dirigiu-se às cavernas do vale de Hinom, onde estavam escondidos os discípulos; anunciou-lhes a morte do Senhor e voltou de lá à cidade, ao palácio de Pilatos.
Grande espanto apoderou-se dos assistentes, ante o grito de morte de Jesus, quando a terra tremeu e o rochedo do Calvário se fendeu. – Esse terror fez-se sentir em toda a natureza; pois rasgou-se o véu do Templo, muitos mortos saíram das sepulturas, desabaram algumas paredes do Templo, ruíram muitos edifícios e desmoronaram montes em muitas regiões da terra.
Abenadar deu testemunho em alta voz, muitos soldados testemunharam com ele, grande parte do povo presente e também alguns dos fariseus, chegados no fim, se converteram. Muitos bateram no peito e, descendo do monte, voltaram chorando pelo vale para casa; outros rasgaram as vestes e lançaram pó sobre a cabeça. Todo o mundo estava cheio de medo e terror.
João levantou-se e algumas das santas mulheres, que até então tinham ficado afastadas, aproximaram-se da cruz; levantaram a Mãe de Jesus e as amigas, conduziram-nas a alguma distância da cruz, para as confortar.
Quando Jesus, cheio de amor, Senhor de toda vida, pagou pelos pecadores a dolorosa dívida da morte; quando entregou, como homem, a alma a Deus seu Pai e abandonou o corpo, tomou esse santo vaso esmagado a fria e pálida cor da morte; o corpo tremeu-Lhe convulsivamente nas últimas dores e tornou-se lívido e os vestígios do sangue derramado das chagas ficaram mais escuros e distintos. O rosto alongou-se, as faces encolheram-se, o nariz ficou mais delgado e pontiagudo, o queixo caiu, os olhos, cheios de sangue e fechados, abriram-se, meio envidraçados.
O Senhor levantou pela última vez e por poucos momentos a cabeça, coroada de espinhos e deixou-a depois cair sobre o peito, sob o peso dos sofrimentos. Os lábios lívidos e contraídos entreabriram-se, deixando ver a língua ensanguentada. As mãos, antes fechadas sobre a cabeça dos cravos, abriram-se; estenderam-se os braços, as costas entesaram-se ao longo da cruz e todo o peso do santo corpo desceu sobre os pés. Os joelhos curvaram-se, tornando para um lado e os pés viraram-se um pouco em redor do prego que os trespassara.
Então se entesaram as mãos da Mãe Dolorosa, a vista escureceu-se-lhe, palidez de morte cobriu-lhe o rosto, os ouvidos deixaram de escutar, os pés vacilaram e ela caiu por terra; também Madalena, João e os outros se prostraram, com a cabeça velada, entregues à dor.
Quando ergueram a mais amorosa, a mais desolada das mães, dirigindo os olhos à cruz, ela viu o corpo do Filho adorado, concebido na virgindade, por obra e graça do Espírito Santo, carne de sua carne, osso de seus ossos, coração de seu coração, vaso sagrado formado no seu seio pela virtude divina, agora privado de toda a beleza e formosura, separado da alma Santíssima, entregue às leis da natureza que Ele próprio criara e de que os homens tinham abusado pelo pecado, desfigurado-a; viu o corpo do Filho Unigênito esmagado, maltratado, desfigurado, morto pelas mãos daqueles que viera salvar e vivificar.
Ai! O vaso de toda beleza e verdade, de todo amor, pendia da cruz, entre dois assassinos, vazio, rejeitado, desprezado, insultado, semelhante a um leproso. Quem pode compreender toda a dor da Mãe de Jesus, rainha de todos os mártires?
A luz do sol ainda era sombria e nebulosa. O tremor de terra foi acompanhado de calor sufocante; mas seguiu-se-lhe depois um frio sensível. O corpo de Nosso Senhor morto, na cruz, causava um sentimento de respeito e estranha comoção. Os ladrões pendiam em horríveis contorções, como embriagados, ambos estavam no fim calados; Dimas rezava.
Era pouco depois de três horas, quando Jesus expirou. Passando o primeiro terror causado pelo tremor de terra, alguns dos fariseus recobraram a anterior arrogância. Aproximando-se da fenda no rochedo do Calvário, jogaram-lhe pedras e atando várias cordas, amarraram uma pedra fizeram-na entrar na fenda, para medir-lhe a profundidade; quando, porém, não tocaram no fundo, tornaram-se mais pensativos. Também se sentiam inquietos com os lamentos do povo, que batia no peito; e por isso, montando a cavalo, retiraram-se; alguns se sentiam mudados interiormente.
O povo também se retirou em pouco tempo, indo pelo vale para a cidade, cheio de medo e terror. Muitos se tinham convertido. Uma parte dos 50 soldados romanos foi reforçar a guarda da porta, até a chegada dos 500, requeridos por Pilatos. A porta tinha sido fechada; alguns soldados ocuparam outros pontos da vizinhança, para impedir ajuntamento e tumulto. Cássio (Longino) e cerca de cinco soldados ficaram no lugar do suplício. Os parentes de Jesus estavam em redor da cruz ou sentados em frente, chorando. Algumas santas mulheres tinham voltado à cidade. Silêncio e tristeza reinavam em volta do lenho sagrado. De longe, no vale e nas alturas afastadas, se via de vez em quando um ou outro dos discípulos, olhando com curiosidade e receio para a cruz, mas retirando-se timidamente, ao aproximar-se alguém.
* Trechos extraídos do Livro "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus", de Anna Catharina Emmeric.